IFIGÊNIA
IFIGÊNIA
Ifigênia é uma pesquisa. Por Flora Barros, Andrea Vilas Boas, Antonio Farina e Pedro Montagnana
SINOPSE
Encarcerada numa instalação de plástico-filme, a performer e bailarina Flora Barros realizará uma atualização do mito de Ifigênia, filha de Agamenon sacrificada por este em troca da vitória na guerra de Tróia. Concebida como um tanque quase hermético, a instalação será preenchida pouco a pouco com água, exigindo da artista uma adaptação constante de seus movimentos, derivada de um alagamento progressivo de seu espaço. Com movimentos sutis e quase cotidianos, necessariamente oprimidos pela pressão da água, a dançarina questionará, num ato simbólico, os sacrifícios femininos promovidos pela busca incessante de poder e dominação de uma lógica falocêntrica.
DESEJOS
Ifigênia, obra ainda imaginária, nasce, talvez como toda obra, de alguns desejos
O primeiro e provavelmente o principal desses desejos é a proposição de um acontecimento que possa, de alguma forma, provocar transformações naqueles que dele participarem. É, por assim, dizer um impulso político, de atuar sobre a realidade de modo a torná-la distinta. Há, é claro, muitas maneiras de se fazer isso. Escolhemos, neste caso, investigar a potência de um acontecimento a um só tempo impregnado de muitos afetos e de muitos significados. Nesse sentido, temos um primeiro plano erguido a partir de uma situação e de elementos explicitamente materiais: uma mulher encerrada em um tanque de plástico e de luzes gradativamente preenchido de água. Buscamos, com esse primeiro plano, uma atuação afetiva mais direta e mais ligada especificamente à dança; em outras palavras, buscamos despertar sentimentos intensos e ainda desprovidos de significados inteligíveis. Acreditamos, portanto, no poder do terror, da piedade e, sobretudo, da angústia que, prevemos, permearão a performance e todos aqueles que a acompanharem.
O segundo desejo, na realidade um desenvolvimento do primeiro, encontra-se na própria possibilidade de investigação estética que fundamenta o trabalho e que constitui o seu segundo plano. Vemos, afinal, a performance e o site specific como campos privilegiados de estudo prático dos processos de significação e de ressignificação. Por meio de referências diretas, tanto textuais quanto visuais, acoplaremos símbolos mitológicos e de outras naturezas ao plano material, convidando, assim, os participantes a uma reorganização de seus significados particulares, relacionados ao sacrifício, à opressão, à dominação e a tantos outros elementos pertencentes a uma dura lógica falocêntrica.
Não temos as respostas, mas, como artistas e pesquisadores, acreditamos na potência das perguntas.
DESCRITIVO
À entrada do museu, um aparente tanque hermético e quadrangular salta aos olhos daqueles que transitam pela Avenida Europa. Dentro de suas paredes de plástico translúcido, está uma mulher: Flora Barros, uma bailarina que, dentro da instalação, executa, inicialmente, movimentos sutis e inspirados em ações cotidianas e reconhecíveis. Voltadas para cada uma das paredes, fora de seu espaço, lâmpadas frias e azuladas criam um estranho contraste com as lâmpadas quentes e com os fios à mostra que, ao centro e no teto, desenham uma espécie de lustre sombrio e fantasmagórico. Por fim, acima de tudo, sobre a superfície superior da passarela, um grande televisor exibe imagens internas desse ambiente que, além de obra, poderia ser simbolicamente um mar, um navio ou, quem sabe, um memorial que permanece muito vivo.
Segundo a mitologia grega, Agamenon, grande rei dos gregos e líder maior da dominação de Troia, escolheu sacrificar a própria filha, Ifigênia, para garantir os bons ventos que lhe trariam a vitória. Ifigênia, então, demonstrando a coragem de uma guerreira, aceita seu destino e toma, também para si, a fortuna de seu povo. Milhares de anos e de tradições depois, o sacrifício, simbólico e literal, implícito e explícito, de diversos sujeitos e minorias persiste como uma prática comum na busca desenfreada pelo poder e pela sua ampliação. Nesse sentido, acredita-se que a apresentação simbólica dessa prática, com a atualização de uma trágica situação mitológica, pode servir ao questionamento da realidade contemporânea, e justamente por meio da catarse: da associação entre o terror e a piedade que acompanham a angústia de empatizar com um personagem fadado à catástrofe, como nas antigas tragédias.
Ao se aproximarem da instalação, ou mesmo ao acompanharem à distância as imagens no televisor, os presentes notarão, não sem certa surpresa, a existência de pequenas mangueiras, que, posicionadas no interior da instalação, inundarão aos poucos todo o seu espaço. Consequentemente, esses mesmos presentes poderão observar a interferência opressiva da água nos movimentos da bailarina, que, pouco a pouco, parecerá paradoxalmente ascender e aproximar-se de seu fim ficcional. Contribuirá para a potencialização do acontecimento a composição sonora, baseada em ruídos e em elementos cotidianos e contemporâneos relacionados à temática abordada. Além disso, referências claras ao mito, na forma de texto, estarão presentes ao redor do tanque, fundamentando simbolicamente o imaginário das pessoas e intensificando a experiência compartilhada. Por último, é importante ressaltar, toda a performance será estudada, estruturada e testada a fim de garantir a total segurança de todos os envolvidos.
Planeja-se, portanto, trazer à tona, de maneira simbólica e performativa, a memória de uma dor que é coletiva e ancestral. Deseja-se isso, entretanto, não pelo seu apreço ou pela sua manutenção, mas pela crença na sua possível interrupção.